Que silêncio!
E mesmo assim um ruído
Vozes passam por mim
Numa harmoniosa inspiração
Mas, não entendo.
Revele-me
Minhas angústias
Falta o sol
Lá bem distante
Sinto
Docemente
Que os sons se misturam
Em uma complexa intransitividade
Pensamentos se esvaem
No sim
No não
Cheguei à plenitude
Criei asas
Sou um querubim
Único e só
Si-lên-cio
Chamo-me eu
(Silenciosa
musicalidade d´alma)
Dayvson Fabiano
O silêncio no romance “Morreste-me”, de José
Luís Peixoto e no conto “Silêncio”, de Clarice Lispector.
Dayvson Fabiano
Poderia começar este ensaio da seguinte forma: “É tão vasto o silêncio da noite na montanha.”; ou quem sabe: “Regressei hoje a esta terra agora cruel.”
Assim como começou a escritora brasileira Clarice Lispector e o escritor
português José Luís Peixoto, respectivamente nas obras ora estudadas. Porém,
preferi começar escrevendo este ensaio escutando a música “Certas coisas”, de
Lulu Santos na voz de Milton Nascimento, assim:
“Tudo que cala fala mais alto ao
coração” e esse silêncio é o que me toca e fez-se ouvir em mim quando me tornei
leitor e ao mesmo tempo personagem dessas duas narrativas. São obras totalmente
autobiográficas, apesar de seu teor ficcional. Quando afirmo se tratar de obras
autobiográficas é porque há indícios de serem. Segundo Philippe Lejeune, a
autobiografia é um:
“Relato
retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, pondo
ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua
personalidade” (LEJEUNE, 1994 apud MACIEL, pág.8)
Por exemplo: José Luís Peixoto fala da
morte de seu pai e toda a dor sofrida por sua falta; Clarice Lispector fala do
silêncio na cidade de Berna, cidade onde a escritora passou um bom tempo devido
ser casada com um diplomata.
No livro “O Silêncio em Psicanálise”,
Juan-David Nasio diz que se for seguido uma reflexão psicanalítica referente ao
silêncio, será necessário estabelecê-lo como estrutural feito das pulsões
(sileo) e o de uma palavra não-dita (Calar-se - taceo), segundo teorias
Lacanianas.
O que fala no coração desses escritores
é o amor em sintonia com o silêncio que são apenas deles. Um silêncio inaudível
para nós – momentaneamente – mas, gritante para os dois. Digo momentâneo,
porque vou descobrindo aos poucos e esse espaço silente vai se fazendo presente
quando vou respirando as palavras e num processo osmose-poético vou me
alimentando e morrendo silenciosamente com o passar das horas nuas.
“O silêncio
não é aquilo que não foi dito, não é o implícito, não é a ausência de palavras.
Ele é o espaço que promove um diferencial que permite às palavras significarem
discretamente”.(LOURES,2010,pág.8)
E
essa significação se faz presente nestas duas obras. O silêncio em Clarice
Lispector é diferente em José L. Peixoto , pois o silêncio de “Morreste-me” é
de dor, da saudade de alguém que se foi e que o silêncio vai se transformando
em palavra-viva de uma lembrança que está em seu inconsciente. O silêncio
no conto “Silêncio” é mostrado apenas em um determinado momento que é pequeno,
dando movimentos às manifestações da natureza numa silenciosa transformação.
O SILÊNCIO DA SAUDADE
José
Luís Peixoto, ao longo de sua narrativa, vai nos proporcionando uma saudade
silenciosa. Um grande silêncio (Taceo) se fez presente, pois algo foi se
calando aos poucos até perecer: o seu pai não pode mais falar. A vida dele não
é a mesma, ele morreu com o seu pai, pois no momento da partida do pai um
pedaço dele foi junto. A sua incompletude se faz presente a todo instante, como
aquela máxima bíblica que diz que somos imagem e semelhança a Deus: o pai morto
era (é) o seu Deus, que mesmo não o vendo acreditava em sua presença nas
lembranças, nas fotos e objetos. Pra quê se estar vivo se naquele espaço não há
a presença do seu pai? “ O silêncio
fluvial, a vida cruel por ser vida”.[2] A música não era mesma de outrora. O silêncio
da perda é angustiante para José L. Peixoto: “Se pudesse tinha-te protegido.”[3] Se pudéssemos,
José, a morte nunca existiria, a não ser que ela fosse como você bem disse: “...não poderiam os homens morrer como
morrem os dias?”[4]Acredito
que assim seria ótimo, pois ao amanhecer aquela pessoa de quem a gente tanto
ama nos olhariam sorrindo e dando aquele abraço que precisamos.
...
Silêncio. O silêncio se fez presente agora. Estava sentindo com mais
vivacidade a lembrança de uma saudade que agora também é minha. Saudade até
daquilo que nem vivi, porém que posso viver e sentir.
“No silêncio,
o sentido se faz em movimento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a
relação de sua identidade (e da sua diferença)” (ORLANDI, 2007, p. 161).
O silêncio do escritor é todo movimento
e a reposta de seu pai vem através das lembranças da falta: há um buraco
abissal. Tenta-se ao máximo encontrar a luz lá no final desse buraco escuro e
infinito. “...ainda há uma luz fina sobre
tudo isto. Tudo se resume a esta luz, fina a recorda-me todo o silêncio desse
silêncio que calaste.”[5] Cadê a voz desse
pai a chamar o filho? Ela se perdeu lá dentro do coração-lembrança de José.
Peixoto vive de todos os instantes ao
lado do pai ao longo da narrativa que é doce, forte e bastante intimista. Não
há um momento sequer que ele viva ou que morra com o pai sem destacar o tempo,
o tempo é agora pretérito-imperfeito que ele o conjuga em 1ª pessoa do plural
do presente do indicativo: nós.
“Há os instantes que vivemos mil vezes juntos e que
agora nascem sem nós e nos ultrapassam. Há o sol que partilhamos mil vezes e
que agora não te aquece, que não me aquece. Pai. Passo por tudo e tudo me deixa
e passa por mim. Caio. Avanço. Regresso”.(PEIXOTO, 2004,pág. 20)
Regressar ao início e buscar meios de
transformar a morte em vida como tentaram os alquimistas buscando o elixir da
longa vida. Peixoto busca através de sua escrita reviver a memória do seu amado
pai: transformando saudade em presença, que vai surgindo com a voz do seu pai
que não fala mais aos seus ouvidos e “é no silêncio que as diferentes vozes do
sujeito se entretecem em uníssono. Ele é o amálgama das posições heterogêneas”. (ORLANDI, 2007, p. 90) Esse silêncio
que é gritante muitas vezes se faz presente na narrativa de Peixoto, porque ele
perdeu o seu maior tesouro. E ele se encontra, quem sabe, em outra dimensão.
“Daqui, recordo o teu rosto no país que habitas, no
país branco negro imenso, o teu rosto a seguir-me, perdido perdido a precisar
de mim perdido num arquipélago de campas e mágoa e manhã ainda. Pai. A tua voz
acompanhava-me dentro de mim”.(PEIXOTO,2004,pág. 35)
A voz de seu pai se
emudeceu no exato momento de sua morte, porém continua o acompanhando em
diversos momentos, em diversas estações do ano e até mesmo na sua estação que
se chama solidão. O seu olhar no momento da partida fúnebre fez-se estação de
frio, primaveril, outonal e de verão: as quatro estações do ano. Ele estava
condicionado ao tempo e em oração conversou com o pai:
“Pai, fiquei no silêncio do inverno que me
abraçaste. Não há primavera se não imaginar erva fresca das palavras erva fresca
ditas por ti; não haverá verão se não imaginar o sol da palavra sol dita por
ti; não haverá outono se não imaginar o fundo do esquecimento da palavra morte
dita nos teus lábios.” (PEIXOTO, 2004, pág. 36)
Uma situação apenas em que surgiriam
vários tempos e o silencio se fazendo presente, sendo o centro: o discurso do
tempo. E caberiam apenas despedidas e silêncio:
“Pai. Dorme, pequenino, que foste tanto. E
espeta-se-me no peito nunca mais te poder ouvir ver tocar. Pai, onde estiveres,
dorme agora. Menino. Eras um pouco de mim. Descansa, pai. Ficou o teu sorriso
no que não esqueço, ficaste todo em mim. Pai. Nunca esquecerei”.(PEIXOTO,
2004,pág. 38)
O SILÊNCIO DA PAISAGEM
A paisagem em Berna, utilizada por Clarice, é de um
silêncio inquietante, como toda inquietação que a escritora se propõe a
escrever. Ela sai descortinando o silêncio com pequenas e singelas informações,
porém de uma grandeza e sem deixar provas onde começa e termina esse silencio.
Há interrogações e sentido nesse conto estudado. Segundo Noeli Lisbôa,
“Cercando o
silêncio com palavras de forma que seus significados assumam um aspecto central
no texto, a escritora (Clarice Lispector) chama o leitor para participar da
constituição do sentido, levando-o, através do silêncio, a regiões suas
desconhecidas.”(LISBÔA, 2008, pág. 177)
Clarice Lispector vai esmiuçando as
significações decorrentes desse silêncio presente e de uma perenidade gritante.
“Como
estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem
lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar”[6].
Há
nesse conto a questão do silêncio que é “Sileo”, pois é feito de pulsões e de
reflexões acerca de fragmentos de silêncio.
O silêncio é algo revelador e ao
mesmo tempo misterioso no conto de Clarice, pois ela fala de um silêncio que
vai crescendo lentamente. E não há como escutá-lo de início: a paisagem daquele
ambiente frio vai se apresentando, “Então ele, o silêncio, aparece.”[7] E
então Clarice o reconhece de imediato, pois “o coração , bate ao reconhecê-lo.”[8]
Além
disso, Clarice vai mostrando um silêncio que vai crescendo ao longo da
narrativa e mostrando pistas de sua coragem. O seu coração pulsa silêncio, por
isso ela diz que, “ o coração tem que se
apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas.”[9]
Há um fogo latente nesse frio-frio de Berna, frio do inverno e frio de pessoas
sem sentimento que perde vida e não respira o amor.
“O
silêncio é assim a “respiração” da significação; um lugar de recuo necessário
para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do
possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”, para o que
permite o movimento do sujeito”. (ORLANDI, 2007, p.13)
E vai-se esperando alguma luz que
toque no nosso íntimo, pois a luz ilumina o nosso silêncio e o faz falar: e aí
é que ele morre pra se transformar num silêncio renovado e que ri em nosso
inconsciente. E a paisagem agora se torna outra: paisagem silenciosa de uma
vida que clama amor.
O SILÊNCIO CRIATIVO: ELABORAÇÃO DE UM CONTO FICCIONAL SOBRE O
SILÊNCIO.
SILÊNCIO E SONS
À amiga Conceição Santos
Ouvindo “Outro Quilombo”, de Mônica Salmaso
Ela vezenquando era mulher-menina,
menina-mulher. Assim mesmo, tudo muito tênue e como a rapidez da luz. Havia uma
fronteira entre esses dois tempos: fase infantil e fase adulta. Sua vida era
musical. Quando estava na fase menina dançava reluzente pela avenida, becos e
ruas. Na fase adulta, dançava numa cadência particular. Somente ela percebia e
sentia o fulgor da música. Qualquer batuque ou barulho era motivo para uma
embolada. Suas mãos acompanhavam essa harmonia dos ritmos. Dançava muito mais
com as mãos do que com os pés. Imagine isso com os olhos fechados ao som de uma
música. Girava mexendo os punhos para que suas mãos falassem. Transformava-se
numa atriz, dançarina, alguma entidade mística ou um simples pirilampo. Isso,
ela tinha luz própria. O seu sangue vinha da negritude na pele branca e frágil
como a sua própria sensibilidade. Ainda tinha perguntas não respondidas desde a
infância. Uma vez quando criança perguntou a sua mãe: “mamãe, por que quando a
gente pisa na poça de água ela fica girando?” Sua mãe a olhava e apenas sorria.
Não havia uma resposta. Na verdade nunca há respostas para as coisas, elas
simplesmente acontecem independentes de. Há uma imensa fronteira entre essa
vivacidade. Quando chegava à noite ela saía correndo para o mar para restaurar
sua alma e quem sabe se tornar uma sereia, pois sua beleza e canto acordavam os
deuses: uma Afrodite humana se fazia presente. Ela se sentia em dois céus e
enxergava duas luas: ao olhar para cima e ao olhar pelo reflexo das águas e
ainda conseguir tocá-la. E nesses momentos se refugiava dentro do seu quilombo
interior para abarcar a sua própria felicidade.
Ao amanhecer, ia novamente à praia para
brincar com a sua solidão e a escrever palavras fragmentadas nas areias para
que as ondas levassem os seus mais íntimos desejos. Saía novamente
girando pela praia a escrever poemas nas areias com apenas um pedaço de
madeira. Lembrava-se de sua mãe quando ela declamava poemas de Casimiro de
Abreu ou quando lia “Capitães da Areia”. Sua nostalgia era silenciosa. Aí
chorava e sentia a água salgada em sua boca. Era o próprio mar, tinha a alma de
um oceano. Passados esses momentos de solidão, voltava-se a vida normal
de sempre. Só que a música estava a todo tempo em sua vida. Tentava de alguma
forma encontrar a música que fizesse sintonia com a da sua história e só a
encontrava, pelo menos momentaneamente, no momento em que voltava a sua
infância e lembrava-se de sua mãe. Só que nem mesmo o seu imenso amor pela mãe
era necessário para sintonizar a música perfeita: faltava o desprendimento e o
acreditar no depois de.
Próximo à sua casa havia uma ferrovia
antiga. Brincava que cruzava as trilhas e ia pra outros lugares, talvez ao mais
puro recôndito de sua alma. Ela continuava escrava das suas lembranças e
pensava musicalmente: “Dor, reluz em mim fazendo
sol lá no meu silêncio”. E ficava esperando o trem que nunca
chegara. Somente o silêncio se fazia presente. Foi novamente à praia, seu
refúgio. Sentia o calor do sol penetrando por sua pele e ficou de joelhos a
louvar aquele imenso mar que estava diante de sua vista. E escreveu na areia
uma mensagem. Só tinha nesse momento de agora a escrita, que estava a seu
favor: a palavra era a sua memória mais permanente. Ela escreveu na areia:
“Faço-me silêncio e espero o som do teu amor”. As ondas vieram e como sempre
levaram o seu pedido. Todo o cosmo se fez silêncio nesse instante. De repente
fez-se chuva. Não acreditava no que estava acontecendo. Chorou muito e seu
choro misturou-se com a chuva. Os pingos caíam em harmonia tocando a música de
sua vida e bailando em sintonia com as lembranças que margeavam a sua alma.
Era chuva com sol. Era quente. Era o amor que falava. Era o “sim”. Foi
acolhida: concebida de silencio e sons e batizada pelo (a)mar.
O SILÊNCIO COMO UMA PINTURA: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tanto
Clarice, quanto Peixoto vão pintando seus silêncios de formas variadas e
diferentes. O espaço de cada um é determinado de acordo com a intensidade desse
silêncio que os dois vão respirando e inspirando, conforme a significação das
palavras. Ela, possivelmente, pela janela de seu quarto vai observando os
movimentos silenciosos pintando-os através dos pequenos detalhes; Ele, ao longo
de suas lembranças, vai misturando cores quentes e frias para pintar o seu
quadro; ou seja, os dois vão pintando as palavras na cor “silêncio”: silêncio
emudecido, pulsante e imagético.
E
essas pinturas na cor “silêncio” vão se transformando em quadros de variadas
formas e estilos conforme a intensidade dos seus sentimentos, e a música
arquiteta para uma forma bela e harmoniosa dessa pintura que se chama silêncio:
silêncio de uma saudade, silêncio como uma paisagem, silêncio como forma narrativa
e silêncio sintetizado como obra de arte. E essa tinta chamada silêncio é que
fala com profundidade em nosso coração, pois “Só se sente nos ouvidos o próprio coração.”[10]
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
LISBÔA,
Noeli T. A pontuação do silêncio: uma análise discursiva da escritura
de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado em Teorias do Texto e do
Discurso. Universidade Federal Do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.
LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro. Nova Fronteira,1980.
LOURES, Telma
Mendonça. Os sentidos do silêncio nos
contos de Bernardo Élis. Dissertação de Mestrado em Literatura e Crítica
Literária. Universidade Católica de Goiás. Goiânia, 2010.
MACIEL,
Sheila Dias. A Literatura e os gêneros
confessionais. http://www.ceul.ufms.br/pgletras/docentes/sheila/A%20Literatura%20e%20os%20g%EAneros%20confessionais.pdf
– acessado em 10/10/2011.
NASIO, Juan-David. O silêncio em psicanálise. Tradução de Martha Prada e Silva. São
Paulo. Editora Papirus,1989.
ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio.
Campinas. Editora da Unicamp, 2007.
PEIXOTO,
José Luís. Morreste-me. Lisboa.
Temas e Debates. 4ª edição. 2002
[2]
Peixoto, José Luís. Morreste-me. Lisboa. Temas e Debates. 2004,pág. 7
[3]
Idem. pág. 10.
[4]
Idem,pág. 12
[5]
Idem,pág. 15
[6]
LISPECTOR, Clarice. Onde
estivestes de noite. Rio de Janeiro. Nova Fronteira,1980.pág. 99.
[7]
Idem,pág. 100.
[8]
Idem,idem.
[9]
Idem, pág. 101.
[10]
LISPECTOR,
Clarice. Onde estivestes de noite.
Rio de Janeiro. Nova Fronteira,1980.pág. 101
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